sexta-feira, dezembro 20, 2002

Eu tô sentindo um vazio imenso, parece que tem um buraco negro dentro de mim, um buraco sem começo nem fim. Parece vazio de fome, sabe? Mas eu almocei, pouco, mas almocei. E comi um monte de fatias de abacaxi, mas o buraco continua lá, numa gigantesa sem fim. E dói pra caramba. E quando dói, eu não consigo conter a droga da lágrima que insiste em cair. Aí o nariz começa a falhar também e eu me toco e paro, enxugo as lágrimas, num ciclo sem fim.
Hoje é dia 20 já, né? Nem acreditei quando olhei no calendário, tá chegando o Natal. Me lembra quando eu era pequena, me lembra os preparativos para a noite de festa na casa da vó do Rafael, na casa da madrinha da Fabinha. A gente nunca passou Natal na casa da vó, nunca teve aquela ceia imensa com toda a família linda e feliz reunida, que nem no anúncio do "peruuuu de Natal", com a netinha mais nova cantando, e minha avó nunca cozinhou, mas a gente sempre passava lá, ficava umas horas, trocava presentes e comia, porque ela comprava algumas comidas já prontas. A gente comia três vezes, porque depois ainda tinha a casa da minha madrinha e só depois rolava a festa legal, que é onde tinha crianças, amigos e Papai Noel, que invarialvelmente adivinhava o que a gente tinha pedido na cartinha. Meu pai dizia que ele não era o Papai Noel oficial, mas era um ajudante dele, e que Papai Noel tinha vários ajudantes porque ele era um homem muito ocupado.


Mas eu não quero falar de Natal agora. Quero falar da tristeza que bate no fim de ano, de uns anos pra cá, e quero falar da tristeza que eu estou sentindo agora. Parece que um ciclo se fechou. Acabou a dor. Não a minha, a minha não importa, acabou a dor dela. Desde que "o" Papai Noel deixou de aparecer no Natal, ela sofria muito. E eu passei a tapar essa dor com a peneira, simplesmente fugindo de perto dela. Assim, eu fingia que não existia dor, fingia que essa dor não a consumia, como eu sei que acontecia.
Falando assim parece que era só isso, e claro que não era. Ela era divertida, super lúcida, contava umas histórias antigas que eram o maior barato, ela lembrava de muita coisa, e se não lembrava, sabia enfeitar bem, porque dava gosto ouvir. Contava histórias da infância e da adolecência, quando ela era modernosa, ia pra corrida de carros na Niemayer e pegava geral, porque era a gostosona da tchurma. Ela começou a dirigir em época que mulher não dirigia Sempre foi pra frente, à frente do seu tempo. Nadava um monte nas praias da Ilha, quando aquilo lá era limpo. E era inteligente, esperta. Eu queria ser assim. Mas também, nos dias de hoje, nada nem ninguém mais choca. Ela chocava. E gostava disso, e eu também, que sempre achei o máximo aquelas histórias todas.

Agora tá tudo mais triste, festas, festas e festas. Até o dia do meu aniversário é triste. E logo depois. E em seguida a vida continua, a gente ri, a gente chora, mas um pedacinho se foi. Mais um. E a gente aprende a viver assim, desmantelado, partido, faltando pedaços, pedaços que se vão sem nunca dizer adeus. Poucos dizem, poucos se despedem.
Sei que não adianta, mas como eu lamento não ter estado com você há alguns dias atrás. Como eu lamento tudo ter dado errado e nós não termos ido ao hospital ontem. Mas eu achava que você estava bem, e que logo, logo esse mal estar ia passar e você ia voltar pra sua casa.
Porque a minha vó sempre foi a pessoa mais saudável do mundo, mais saudável que eu, que você, que todos nós juntos. Eu achava que se um dia ela fosse morrer, fosse ser dormindo, como foi com meu avô, mas isso só daqui há uns 130 anos, que nem tartaruga. Mas não foi. E ninguém me avisou antes. Eu cheguei naquele hospital e ali, naquele minuto, várias pessoas em volta tentavam pedir uma chance mais a Deus. Mas não deu. Não deu.

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