domingo, abril 13, 2003

Uia!
Recebi hoje por mail, matéria antiga do Dapieve:

"Caso interessante

Um dos programas mais instrutivos exibidos no Brasil é o “Sala de emergência”, sextas-feiras, 22h, no canal por assinatura Discovery. Embora o nome seja uma tradução do emergency room que, abreviado, deu no “E.R.”, ou “Plantão médico”, a série não tem nada de edulcorada, nada de romântica, nenhum George Clooney, nenhuma criancinha mimosa presa na caminha. É gente de carne, osso e vísceras, muitas vísceras, flagrada em estilo telejornalístico, medicando e sendo medicada no setor de emergência de grandes hospitais públicos americanos, muitos deles ligados a universidades.

“Sala de emergência” ensina um bocado de coisas sobre o duro exercício da medicina de trauma, sobre a frágil anatomia humana, sobre a onipresente fatalidade, sobre essa existência miserável, enfim, sobre nós, caniços pensantes a quem basta uma gota de água para matar (obrigado, Pascal). Dia e horário, aliás, parecem-me mais-que-adequados para a sua exibição: se o cidadão não tem nada melhor para fazer e está em casa assistindo à televisão numa sexta-feira à noite, precisa mesmo ver algum drama humano que lhe assegure estar numa boa, com tanta gente sofrendo de verdade lá por cima.

Lembra do garoto do filme sueco “Minha vida de cachorro”? Ele botava suas pequenas desgraças cotidianas em perspectiva, ao pensar, por exemplo, na cadela Laika vagando pelo espaço até a morte, encapsulada por cientistas soviéticos em benefício da ciência. O programa do Discovery cumpre papel similar. Naturalmente, para boa parte da população brasileira, dependente (sic) do SUS, “Sala de emergência” é um seriado de ficção científica. Nele nunca faltam leitos, remédios, centros cirúrgicos, médicos, enfermeiros. Também nunca falta esperança: a edição descarta os casos em que, a despeito de todos os recursos alistados na frase anterior, o paciente morre. Melhor assim.

Bom, sou espectador de “Sala de emergência” há um bom tempo. Ver alguém com o olho pendurado para fora de órbita em conseqüência da violência de um choque no trânsito torna fútil qualquer problema do decorrer da semana, a menos, claro, que você tenha ficado com o olho pendurado para fora da órbita em conseqüência da violência de um choque no trânsito. Nunca foi o meu caso, graças a Deus ou coisa parecida. Não me peça, porém, para assistir a nada parecido com um “Plantão veterinário”. Bicho sofrendo está além do meu limite emocional. Óbvio que, para não ser contraditório, eu deveria ser vegetariano. Juro que às vezes penso nisso, entre o Bob’s e a Porcão.

Digressiono, digressiono.

Bem, enrolei, enrolei — com medo de que os leitores fugissem se eu entrasse de cara no assunto específico que me fez escrever sobre “Sala de emergência”. Bem, sexta-feira passada assisti ao caso mais bizarro de todo o meu tempo de assistência, caso que por coincidência envolvia um brasileiro, de sobrenome Domingues. Ou muito me engano ou o episódio chamava-se “Miraculoso”. Caso estejas a tomar o café, vai por mim, lê a coluna mais tarde, troca para tema mais ameno, Botafogo, Iraque, Coréia do Norte.

Domingues deu entrada num hospital de Orlando, Flórida, com dores lancinantes, depois de ter despencado de uma escada sobre uma árvore. Um dos galhos entrou direto pelo seu ânus, empalando-o. O galho ainda estava lá. Os médicos faziam fila para testemunhar aquilo que um deles chamou de “caso interessante”. Na mesa de operações, primeiro foi necessário serrar a parte da madeira que estava para fora, com algumas folhas e tudo, para que o paciente pudesse ser deitado de costas, de modo a que se fizesse uma incisão em seu abdômen. Os cirurgiões não sabiam até onde tinha chegado o galho e que estragos ele tinha feito nos órgãos internos pelo caminho. Mexi-me no sofá.

Aberto sob os holofotes, Domingues revelou-se, veja só, um homem de sorte. A ponta havia parado a apenas três centímetros de seu coração — e não maltratara muito intestino e bexiga na passagem. Grande demais para ser retirado por inteiro (1,20 metro de comprimento total, com seis centímetros de diâmetro), o galho teve de ser serrado em pedaços. No processo, o paciente ficou cheio de farpas e de serragem por dentro. Apesar de a equipe médica ter lavado suas tripas como se estivesse preparando dobradinha à moda, uma infecção parecia iminente. Costurou-se o homem à espera dela. Remexi-me no sofá.

No entanto, veja só, a infecção não veio, ufa. Pai de duas menininhas gêmeas deixadas no Brasil, Domingues recuperou-se muitíssimo bem. Ao fim do programa, gravado três meses depois, ele apareceu dirigindo até o local do acidente, uma mansão onde trabalhava. Sua expressão de alívio era impressionante. Fossem outros os tempos e as circunstâncias, poder-se-ia dizer que esse brasileiro nasceu com a bunda virada para a Lua."

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