O olhar perdido
Um dia, meninas criadas, vida ganha, eu quero morar bem longe do Rio de Janeiro. Não só isso. Pretendo varrer a cidade da memória e da consciência, pretendo conservar somente uma pálida lembrança de como ela é. Então, outro dia, às vésperas de partir, quero voltar ao Rio de Janeiro e, olhos de gringo operados de catarata estética no auto-exílio de uma Dublin, descobrir, bestificado, o que perdi durante a maior parte da minha existência.
Há momentos em que meu olhar perdido entrevê o Rio de Janeiro. Apenas uma chispa de cidade, logo retirada de vista pela rotina, pela pressa e pelo medo. Só quem espera a morte já não se importa com nada, não tem nem compromissos nem temores. Daí meu sonho. Como o traficante de “Vivendo no limite”, que, espetado pelas costas na grade do topo de um arranha-céu de Nova York, diz ao paramédico: “Adoro esta cidade.”
Ou como um dos casos narrados no próximo livro de Drauzio Varella, do qual o autor leu trechos na Festa Literária Internacional de Paraty. O tema não é leve: pacientes terminais e sua relação com o inevitável. Um deles, muito mal, pergunta ao doutor se aquela será a última vez que irá para o hospital. O médico tem de admitir que sim, talvez seja. O doente, então, dispensa a ambulância: “Vamos de carro, que o dia está bonito.”
Passei pela porta do Maracanã pouco antes do início do último Fla-Flu. O dia estava bonito. Fazia sol e frio, combinação rara por estas bandas. A luz começava a cair, conforme as pessoas, não muitas, vestindo vermelho-e-preto ou verde-vermelho-e-branco acorriam ao Maior do Mundo. Ali, rapidamente, eu pude ver a beleza do Rio de Janeiro. Senti uma espécie de ternura por aquela gente, com quem compartilho a paixão, não o seu objeto.
Mais freqüente é ter uma epifania geográfica no Aterro do Flamengo, onde caminho com alguma regularidade. De vez em quando, por entre o suor e a endorfina, aparecem a Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar, a Urca, Niterói, as serras nos dias claros, o Corcovado e seu Cristo envolto em nuvens, como na ressurreição de Nova Jerusalém. Óbvio, a topografia está ali o tempo todo, há eras geológicas. E eu, que geologicamente em breve partirei, quase não a percebo, estressado com calorias, horários, temas para colunas.
Saber que o Rio de Janeiro está logo aqui fora de mim e que, no entanto, de certa forma ele me é inacessível dá uma baita frustração, um tremendo sentimento de fragilidade e impotência. Penso em Marina cantando “as coisas não precisam de você”, penso em Sartre descrevendo, nauseado, a concretude indiferente de uma árvore. Aperto o passo, de raiva, a fim de deixar para trás o existencialismo e me conformar com a cegueira histérica.
Penso, ainda, que não é por outra razão que certos casais precisam se separar para descobrir que se amam de verdade. A beleza talvez só possa ser apreciada de longe, no espaço ou no tempo, como numa foto preto-e-branco de Marc Ferrez. Quem sabe eu precise pedir um tempo à proverbial Cidade Maravilhosa? Daí ter mencionado Dublin, um xodó. Feiosa, celta, letrada, quase sempre cinzenta, a capital da Irlanda seria a perfeita antípoda do Rio de Janeiro se também não fosse lar de um povo simpático, gentil e solidário.
Lá, talvez eu potencializasse minha dolorosa automedicação pela distância. Pílulas de Rio de Janeiro têm aumentado a angústia, até porque não domino os momentos de ministração . Forço a barra, peço para o táxi ir da Gávea em direção ao Centro pela orla, mas as praias, sobretudo em dias de mar baixo, acabam me recordando mais as mazelas que as belezas. Procuro bares e restaurantes às margens da Lagoa. Eles, porém, desaparecem.
A beleza, contudo, continua ali, eu sei. Ela surge, fugaz, meio como cena de passagem: o mar quando quebra na praia, o Hotel Marina quando acende, a noite quando cai sobre o Leblon. Parece coisa de novela do Manoel Carlos. Por falar no bairro-fetiche, experimente olhar à noite para o Morro Dois Irmãos, iluminado, da varanda do Jobi. Há boas chances de, mesmo sem álcool nas idéias, você entender o meu drama. Aquilo está ali desde sempre — o morro, não o bar — e nossos olhos blasés não o enxergam em sua glória.
Por isso, um dia, não agora, um dia, eu quero ir embora, para longe, muito longe, em quilômetros, clima e espírito, de modo que, antes dos meus finalmentes, eu possa enxergar o Rio de Janeiro como ele é, lindo, lindo, lindo, com os olhos dos que chegam ou dos que passam, não os olhos dos que apenas são ou estão, inconscientes de sua sorte. Na verdade, acho que todo carioca merece ter um bom dia de estrangeiro em sua cidade. Ou, ao menos, ser levado para vê-la de cima, do avião, e saber, afinal, por que a alma do Tom Jobim cantava. Quem sabe, um dia, a gente não consegue reaver o nosso olhar?
sexta-feira, agosto 29, 2003
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