segunda-feira, janeiro 05, 2004

Escravos por opção

Você fatalmente já ouviu Maria Rita, seja por opção ou osmose radiofônica. Aliás, ligue o rádio. Nesse exato instante, “A festa”. pode estar entoando em um punhado de estações do país. Mas “Lavadeira do rio”, você ouviu? E “Menininha do portão”, outra do disco de estréia da propalada cantora? Do belo álbum “Cosmotron”, do Skank, seus ouvidos fatalmente cansaram e se acostumaram com a balada “Três rios” e a beatle-dançante “Vou deixar”. Mas o novo CD da banda mineira é um gol de placa nas outras 12 faixas, ignoradas pelos tímpanos de quem não comprou o disco.

Culpa-se exaustivamente a pirataria de CDs como a estocada que fez ruir o império fonográfico. Assim é fácil. Lavam-se as mãos com água sanitária, afinal o vilão está logo ali na esquina, na banca do camelô. Difícil é reconhecer nos próprios vícios outro motivo para as vendas cada vez mais minguadas de discos no Brasil. E a espinha que ajuda a entalar a garganta, ninguém se atreve a admitir, é a famigerada “música de trabalho”. É ela que faz Skank e Maria Rita martelarem no seu ouvido as repetidas canções. Resta ao ouvinte três opções: gostar da “música de trabalho”, aceitá-la pela insistência ou repeli-la pelo mesmo motivo.

A “música de trabalho”, é bom explicar, funciona assim: um artista grava seu disco e, duas ou três semanas antes de ele chegar às lojas, o produtor, o departamento de marketing e (algumas vezes apenas) o próprio artista escolhem qual delas deve ser despejada antes nas emissoras de rádio, para ir esquentando o ouvinte para o lançamento. Essa canção, a chamada “música de trabalho”, é distribuída então num CD single, com esta única faixa e dirigido exclusivamente a rádios e TVs. Pronto: está preparado para ser teimosamente repetido no seu ouvido o próximo sucesso.

Como estratégia de marketing, a iniciativa é absolutamente lícita por parte da gravadora. O problema surge exatamente quando o disco propriamente chega ao mercado (e também às emissoras de rádio). Aí, a coisa muda completamente.

Entram em cena, então, os programadores de rádio. Uma profissão que, se não está em extinção, deveria estar, já que são tão figurativos quanto a família imperial brasileira. Por que diabos num álbum magnífico como “Balacobaco”, que Rita Lee ousou lançar como nos seus bons tempos, só escutamos “Amor e sexo”, quando no repertório tem pérolas tão ou mais saborosas? Ou por que, no espetáculo de faixas de “Como vão vocês?”, dos Titãs, temos que nos contentar com “Eu não sou um bom lugar” e “Enquanto houver sol”? Resposta fácil: “músicas de trabalho”.

Os fantoches da programação de hoje são bem diferentes dos de ontem. Para começar, não ouvem discos — pelo menos não os de Maria Rita, Skank, Rita Lee e Titãs, só para citar quatro nomes do pop/MPB que estão na praça há alguns meses com discos primorosos, do início ao fim. Bonecos manipulados das rádios não têm coragem de ser abusados. Se limitam a fazer o papel de meros pombos-correios do que determinam as gravadoras. Não existe mais um Big Boy ou um Maurício Valladares — dois nomes dos tempos em que DJ era disc-jóquei de rádio — que se lixavam para a “música de trabalho” e se arrepiavam com uma outra escondida lá no meio do disco, digna de merecer uma aposta com todo o cacife.

Se os programadores são escravos por opção das “músicas de trabalho”, as gravadoras não são menos culpadas. Se em vez de lançar um single para ditar arrogantemente o que querem no dial, mandassem com antecedência o CD inteiro para as rádios, a diversidade de boas músicas oferecidas ao ouvinte seria um estímulo ao consumo. Na ditadura da “música de trabalho”, sai perdendo o artista que brinda o ouvinte com um CD inteiro caprichado. Saem ganhando os Tiriricas, os Bondes do Tigrão e os MCs Serginhos, efêmeros como seus únicos singles. O sucesso espontâneo acaba relegado. Alô, gravadoras e rádios, será que vocês são tão cegos (ou tão surdos) que não enxergam que a “música de trabalho” só dá trabalho? Democracia sonora é bom e o ouvinte gosta.

(LUIZ ANDRÉ ALZER é jornalista)

Nenhum comentário: