Independência
Deu nos jornais, nas rádios, nos sítios da Internet. No meio da tarde de segunda-feira da semana passada, Paulo Henrique C. Santos, de 25 anos, fechou as pistas dos dois sentidos da Ponte Rio-Niterói. Morador de Alcântara, ele estava numa van, obrigou o motorista a parar no vão central e, durante quase meia hora, sentou-se na mureta, ameaçando jogar-se lá de cima. Uma equipe de socorro da concessionária Ponte S.A. convenceu-o a sair dali, e ele foi encaminhado diretamente ao Hospital Psiquiátrico de Jurujuba. Até os jornais do dia seguinte, ninguém sabia o que havia motivado o ensaio de suicídio. Depois, Paulo Henrique foi esquecido em prol dessa infindável listagem de mortos, assassinados e suicidas bem-sucedidos a que chamamos vida.
Quando li pela primeira vez sobre esse episódio banal, numa curta nota no tempo (ir)real da internet, incomodou-me a naturalidade do encaminhamento ao hospício. Talvez ele devesse ser preso por atravancar o caminho de dezenas de milhares de pessoas já engarrafadas naquele trânsito infernal, talvez ele devesse ter que pagar uma multa à concessionária pelo trabalho que deu, tudo isso eu entenderia. No entanto, a mensagem subliminar - "quem pensa em se matar só pode ser maluco" - me parece
absolutamente incompreensível. E nós lá sabemos quais são, ou se soubéssemos teríamos como avaliar, as razões para o Paulo Henrique pensar em pôr fim à própria vida? Talvez ele nem pensasse nisso a sério, mas e daí? O mundo já não se esmera em nos dar motivos suficientes?
Vou ser franco. Não entendo como alguém que de fato nunca tenha pensado em se matar -apenas pensado, não é preciso ter comprado a corda ou contemplado o pátio lá embaixo - pode ter passado no exame psicotécnico do Detran. Saca aquele negócio de desenhar o chão debaixo da arvorezinha? Pois é. Senso de realidade. Quem nunca pensou em se matar que se atire da primeira pedra. Quando tinha 20 e poucos, entre um e outro drinque Chuva Ácida no Crepúsculo de Cubatão, planejava não chegar aos 30. Hoje, aos 30 e bastante, há dias em que fica difícil, muito difícil, contemplar os 40, e olhe que o Botafogo não está mal. Mas não tenho intenção de me apresentar ao Hospital Psiquiátrico de Jurujuba. Há, creio, algo de saudável em pensar de vez em quando no vão central.
Não sei se era isso que os Beatles tinham em mente ao cantar que "a felicidade é um revólver morno". Mas com certeza era a isso que se referia Nietzsche ao escrever: "A idéia de suicídio é uma grande fonte de conforto: com ela pode-se atravessar calmamente muitas noites ruins". Ou Cioran, em sua célebre e irônica declaração: "Sem a possibilidade do suicídio, eu teria me matado há muito tempo". Também era dessa independência, ou desapego, ou distanciamento crítico, e logo comprometimento consciente, em relação à vida de que falavam os existencialistas. Camus, por sinal, dedicou um lindíssimo livro, "O mito de Sísifo", ao suicídio, único "problema filosófico verdadeiramente sério". Depois de virar o assunto pelo avesso, o ex-goleiro amador tirava uma conclusão do fundo do gol: "É preciso imaginar Sísifo feliz". E, há, claro, Morrissey cantando e comemorando, num contexto distinto, apaixonado, que "há uma luz que nunca se apaga".
Cogitar tirar a própria vida, portanto, é um exercício de responsabilidade, consigo e com os circunstantes. É, ao mesmo tempo, um ensaio de liberdade frente a uma suposta providência divina (não é por outra razão que as principais religiões condenam os suicidas ao desterro: ele coloca em xeque a autoridade de Deus, considerado provedor da vida). Por tudo isso, uma apologia do suicídio é uma contradição em termos. Estão excluídos das duas últimas frases os kamikazes japoneses da Segunda Guerra Mundial e os palestinos que se explodem em pizzarias de Jerusalém em nome de Alá, entre outros. No meu aniversário de 21 anos, ganhei de presente de um amigo a edição brasileira (EMW Editores, 1984) de "Suicídio - Modo de usar", de Claude Guillon e Yves Le Bonniec, que à época causava celeuma não só por discutir o tema como por apresentar várias receitas de coquetéis de remédios que, se seguidas, eliminariam o risco de o suicida falhar, sobreviver e babando verde. Bom, os anos se passaram, sobrevivemos a várias namoradas, continuo aqui e o meu chapa também. (Hoje, aliás, é aniversário dele. Parabéns, William)
Seja como for, esse livro e alguns outros me fizeram incompreender por que um sujeito deve ser automaticamente encaminhado para tratamento médico porque pensou em ou tentou se matar. Veja bem, vivemos aqui no Parque Temático Dante Alighieri, no
qual o Paraíso está em reformas desde que Adão deu um amasso em Eva mas as filas do Purgatório e do Inferno dão a volta no planeta. A Michelly Machri não telefona, balas perdidas matam mulheres grávidas dia sim, dia não, marretas caem de cima dos prédios em construção, crianças católicas são quase linchadas por protestantes adultos no brinquedo Irlanda do Norte, crianças palestinas são fuziladas por colonos israelenses no brinquedo Terra Santa e, segue minha solidariedade aos leitores
rubro-negros, o Fábio Augusto e o Alexandre Gaúcho não acertam passe nem em tabuleiro de futebol de botão...
E louco é quem pensa em pular da ponte? Pena que a delegação dos suicidas não vai poder comparecer à conferência da ONU contra o racismo e a discriminação.
segunda-feira, fevereiro 12, 2007
achei esse texto do dapi nos 'disquetes perdidos'. deve ser de 2000, 2001, sabe deus. mas tem a ver...
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